Em 20 de novembro celebrou-se, no Brasil, o Dia Nacional da Consciência Negra. Esse dia foi escolhido em referência à data da morte de Zumbi dos Palmares, uma das principais referências na luta e resistência ao racismo escravocrata que acontecia no Brasil e responsável por criar o Quilombo de Palmares, o maior do país, que recebia escravos refugiados de todos os cantos do Brasil.
Embora se tenha percebido alguns avanços em relação ao combate ao racismo no país, é ainda muito pouco, temos uma cultura repressiva deveras incipiente e, nesse sentido, há muito o que se refletir e avaliar em relação à maneira como estamos seguindo para mitigar o racismo estrutural que existe na sociedade brasileira.
O racismo é uma realidade triste que assola a nossa sociedade, mesmo sendo a população brasileira miscigenada e composta significativamente por pardos e negros.
Destaque-se que esses conflitos baseados na cor foram tratados pela legislação brasileira como crimes e, como tal, merecem a repressão firme do Estado para impedir que novas práticas preconceituosas voltam a ser repetidas. Contudo esse caráter preventivo da pena nos delitos de ódio como o racismo não consegue ser efetivo e a recorrência de tais condutas assombra diariamente a nossa realidade.
Como o racismo funciona na prática
Hoje vou ilustrar o nosso tema trazendo dois casos reais de racismo que aconteceram na realidade sergipana e quais foram os seus desdobramentos, para ser possível compreender como se deve proceder sem situações parecidas.
Durante os dois anos em que trabalhei como Delegado de Polícia no Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV), fui titular da Delegacia de Combate aos Crimes Contra as Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência (DEAIPD), mas tive a oportunidade de conviver com a colega Delegada Meire Mansuet. Ela que, com orgulho, identifica-se como mulher negra, é também a responsável pela unidade especializada de combate à homofobia, e aos crimes de racismo, intolerância religiosa e contra profissionais do sexo (DACHRI).
Nessa unidade especializada, a Delegada Meire relatou que se deparou com muitos casos, sendo que vários sensibilizaram-na, por relevarem a crueldade que muitos seres humanos possuem, isso mesmo já contando com quase 30 anos de profissão, não tendo perdido a capacidade de emocionar-se, em especial, tratando-se de delitos de motivação no ódio como os que são investigados no DAGV. Tais fatos ainda trouxeram para ela a reflexão de como o ser humano pode ser cruel, odioso e revelar a sua feição mais nefasta.
O dia em que uma agente do Estado foi vítima de racismo e valeu-se de sua prerrogativa para afastar o seu agressor
Em um desses casos, uma jovem negra, acompanhada de uma idosa branca passeava em um grande mercado da cidade de Aracaju, realizando compras, quando, em determinado momento, foram abordadas por um dos seguranças do estabelecimento. Ele perguntou se a senhora branca conhecia a moça que a acompanhava e se ela estava incomodando-a. Mesmo diante da resposta negativa e de que não havia qualquer situação de incômodo, o segurança, de forma invasiva, insistia em indagar se a moça negra estaria perturbando a senhora branca e ainda complementava que ela não deveria vender tickets aos clientes da loja.
Diante da insistência, a senhora branca revelou que a jovem negra era sua filha, e que era ele quem estaria incomodando, e face a recalcitrância do segurança, que não acreditava que a jovem negra podia ser filha da mulher branca. Assim, a filha, sentindo de perto a situação discriminatória, identificou-se como policial e alertou que se ele não parasse, iria dar-lhe voz de prisão e conduzi-lo à delegacia. Sendo que só assim, ele parou e deixou o local.
Depois do ocorrido, elas saíram do mercado e no outro dia procuraram a delegacia, conversaram com a Delegada Meire que registrou o boletim de ocorrência e instaurou o inquérito, ouvindo a vítima e sua genitora. Por ser policial, a vítima cercou-se de cautelas e identificou testemunhas que tinham presenciado a cena, e já no dia do fato colheu nomes que puderam ser ouvidos na delegacia. Dessa forma, garantir uma boa instrução do procedimento que ainda teve as imagens do circuito interno de monitoramento. Assim, ficou muito bem evidenciada a conduta de racismo e a delegada indiciou o segurança pela prática do crime de racismo (art. 20 da Lei 7.716/89) e ainda forneceu subsídios para uma ação de indenização contra o segurança do supermercado.
As providências legais foram adotadas e o processo tramita na justiça, esperando-se que o indiciamento converta-se em condenação criminal para que outras práticas discriminatórias como essa não se repitam pelo autor e o estabelecimento seja bem mais criterioso na seleção de seu corpo de funcionários. além de orientá-los para não permitir outros comportamentos semelhantes.
O que mais chamou a atenção da Delegada foi o constrangimento reflexo que a vítima sentiu por sua genitora, que se viu acuada diante da insistência do agressor, e indefesa não conseguia repeli-lo. Ela teria se emocionado ao relatar os fatos sensibilizando a todos.
A cor da pele não garante atendimento prioritário
Outro caso em que a Delegada Meire Mansuet atuou e chamou bastante atenção, mas que infelizmente ainda é comum em serviços prestados pelo estado, aconteceu em uma unidade de saúde. Uma jovem negra, enfermeira qualificada, desempenhava suas funções em um hospital público, quando foi interpelada por uma senhora branca que alegava merecer atendimento prioritário.
A enfermeira afirmava que em um atendimento de saúde existem graus e prioridades clínicas que justificavam que uma pessoa fosse atendida antes de outra, no entanto, mesmo ela descrevendo a sua situação, a senhora não se enquadrava dentro das hipóteses de prioridade e necessitava aguardar a ordem de atendimento e que ela seria chamada pelo médico. Mesmo diante da resistência da senhora, a enfermeira, educadamente, solicitou à paciente que aguardasse a vez dela e que ela seria atendida. E que, no momento, outros casos de urgência estavam sendo atendidos em grau de prioridade.
Inconformada, mesmo com toda a forma educada que foi atendida, por estar contrariada, a paciente contrariada passou a ofender a funcionária chamando-a de “negrinha”, “vagabunda” e perguntou “quem era ela para dizer que aquela senhora não estava em situação de prioridade”, além de diversas outras ofensas graves. A situação evoluiu e, para evitar outros desdobramentos, a enfermeira deixou o local.
O caso ganhou repercussão e a enfermeira, dias depois procurou a delegacia e o procedimento foi instaurado, sendo que ela igualmente de forma cautelosa, cercou-se de testemunhas, indicando-as para serem ouvidas na delegacia, sendo reunidas outras provas que possibilitaram o indiciamento da senhora paciente pela prática do crime de injúria racial.
A injúria racial, é um crime previsto no art. 140 § 3º do Código Penal e pune os agressores com pena de até três anos de reclusão. Frise-se que por ser um crime que tem como base uma motivação de ódio, é equiparado em condições ao racismo, tendo reconhecida a sua imprescritibilidade pelo Supremo Tribunal Federal.
Com tal entendimento, ocorrido um fato dessa natureza, a qualquer tempo, independentemente de quando o delito tenha sido cometido, sendo o fato praticado com essa motivação, o seu autor poderá ser responsabilizado criminalmente, sem os prejuízos da responsabilidade pecuniária e da responsabilidade civil.
Esse caso narrado marcou a Delegada justamente pela arraigada superioridade que algumas pessoas entendem possuir em face de outras que sejam negras, desrespeitando qualquer condição pessoal, formação profissional, respeito e urbanidade com que foi tratada, valendo-se somente do fato de ela ser branca e a outra ser negra, para que tal fato fosse uma licença irrestrita para ofendê-la e humilhá-la como fez.
O Dia da Consciência Negra pede reflexão
O que se percebe com esses dois casos que, infelizmente, são corriqueiros e muito mais comuns do que se imagina é que diuturnamente a sociedade brasileira expõe ranços históricos de racismo que acabam por reverberar em situações iguais e outras tantas semelhantes às aqui narradas que com frequência acontecem.
A sentimento de impotência diante de cenas de violação como essas não pode prosperar e precisamos rever a nossa contribuição em todo esse cenário. A reflexão fica para que, para além da retórica a data do dia 20 de novembro repercuta e incomode para que não sejamos tolerantes, lenientes com condutas iguais a essas e tantas outras discriminatórias e preconceituosas.
Assim, devemos refletir sobre tudo isso e mais, precisamos entender e mudar comportamentos que estimulam a prática de atos de racismo. E assim, impedirmos que atos dessa natureza se repitam por conta do silêncio diante da consumação de um crime, o que, de certo modo, também nos corresponsabiliza pela sua ocorrência.
A boas ações vão ao encontro dos anseios de luta por dias e contextos mais iguais, menos discriminatórios e, enfim, mais humanos.
Ao tomar ciência de atos de racismo, não compactue e rompa com o silêncio! Denuncie para esses canais de comunicação com as autoridades policiais: disque 100 (disque direitos humanos), disque 181 (disque denúncia da Policia Civil) e disque 190 (Polícia Militar).
É no silêncio dos bons que os males prosperam. Reflitamos!!
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